Filme “As Fado Bicha” é “um suspiro de utopia” no mundo do fado e do cinema
O documentário “As Fado Bicha”, realizado por Justine Lemahieu, chega às salas de cinema em Portugal a 17 de Abril. O filme acompanha Lila Tiago e João Caçador, a dupla do projecto musical e activista que revolucionou o fado nos últimos anos e o devolveu às suas próprias raízes dissidentes. A RFI falou com Justine Lemahieu, Lila Tiago e João Caçador sobre o documentário descrito como “um suspiro de utopia” e “uma possibilidade de estender pontes”. O projecto Fado Bicha inscreveu no património da canção portuguesa as vivências de uma comunidade LGBTQIA+ invisibilizada, quebrando e questionando barreiras e normas musicais, de género, de sexualidade e de linguagem. Ao filmar os bastidores, os ensaios, as sessões de maquilhagem, as performances e os momentos de reflexão de Lila Tiago e João Caçador, Justine Lemahieu retrata também o impacto estético, social e político das Fado Bicha. Tudo começou quando a realizadora franco-portuguesa, a viver em Lisboa há vinte anos e que trabalha sobre lutas e formas de resistência, assistiu a um concerto de Fado Bicha, no seu bairro, e soube que queria fazer um filme sobre o que estava a ver e a sentir.“Tudo isto começou porque assisti a um concerto das Fado Bicha no meu bairro, num pequeno bar. Foi assim que eu conheci a banda. Fiquei muito cativada pelo trabalho delas. Fiquei bastante emocionada pela música, pela performance. Senti uma beleza e senti vontade de partilhar essa emoção e a beleza que encontrei. Também senti que essas artistas estavam a fazer um trabalho importante relativamente à reflexão, ao questionamento sobre as normas de género. Também gosto muito de fado e senti que elas estavam a mexer num lugar muito complexo da cultura portuguesa, que estavam a quebrar barreiras e a fazer um trabalho bastante subversivo, politicamente muito forte”, explica a realizadora.Justine Lemahieu ficou particularmente sensibilizada com a canção “Crónica do Maxo Discreto”, na qual encontrou, pela primeira vez, “pessoas que quebravam o tabu das sexualidades escondidas”. Admirativa dessa “coragem de quebrar tabus” e de trazer para cima do palco tantos temas silenciados, não faltaram à cineasta mais razões para querer conhecer e filmar o projecto. Outro motivo com o qual se identificou foi o facto de as artistas cruzarem questões políticas de género com discriminações ligadas à classe social. Depois, a realizadora deixou-se levar pela própria ligação com a cultura portuguesa e quis reflectir sobre o espaço que o fado aí ocupa.“Ocupação” foi justamente o título do disco de estreia, editado em 2022, no qual as Fado Bicha resgataram um espaço queer no Fado. Essa ocupação chega agora ao cinema e quando questionadas sobre o que isso representa, Lila responde que é “estender pontes de identificação”, enquanto João fala em “suspiro de utopia”.“Representa um suspiro de utopia. Nos dias que correm - e no tempo todo que já vivemos, não só nós enquanto pessoas, mas a nossa ancestralidade - poder ver, numa sala de cinema, alguma representação mais pessoal, um olhar mais íntimo sobre a nossa existência, eu acho que traz um rasgo de utopia e também de olhar para o futuro. É, finalmente, também estarmos nesses lugares e sermos representados. A mim deixa-me muito comovido”, conta João Caçador.“É também uma possibilidade de estender pontes. Não é só estender pontes para outras pessoas queer como nós, é estender pontes de identificação, estender pontes de comunidade, de entendimento, a pessoas que não têm qualquer relação connosco, que não tem qualquer relação com a arte queer, com o pensamento queer, que não vêem isso à sua volta, que acham que é uma ficção do estrangeiro. A Justine tem esse lado muito conciliador, muito intimista, muito de nos entender a nós, enquanto pessoas, as nossas inquietações, aquilo que nos move. Então, também permite a pessoas que não têm, se calhar, sensibilidade, porque nunca conheceram ou acham que nunca conheceram ninguém queer. É também estender uma ponte, dizer: ‘Consegues encontrar-te na nossa humanidade também? Se calhar também consegues.’ E isso é muito potente”, diz Lila Tiago.O documentário começa com a realizadora a perguntar: “Dizemos as Fado Bicha e não os Fado Bicha. Porquê?” Lila responde: “Dizemos o Fado Bicha ou as Fado Bicha. Usamos o plural feminino como forma alternativa, reparação histórica.” Esta é a chave com a qual entramos no filme, o que nos leva ao peso simbólico da “reparação histórica” através da arte, da música e da língua.“É entender como a linguagem e a língua portuguesa - e qualquer outra - encerra uma série de enigmas que nem sequer estão visíveis a uma pessoa que não queira procurar por eles. Um deles, por exemplo, é a forma como o género está inscrito na língua, temos coisas como o masculino universal, tanto no plural como no singular. Então começámos a usar o plural feminino. Eu utilizo pronomes femininos também e o João utiliza pronomes neutros ou masculinos. Essa noção de reparação histórica é um bocadinho isso, tem um lado recreativo, tem um lado provocador, mas também tem um lado intelectual muito particular, que é de olharmos para a língua e percebermos que, durante séculos, para estes dois corpos - o meu e do João ou quaisquer outras combinações de corpos em que houvesse pelo menos um homem - seria utilizado o plural masculino, por mais que fossem mil mulheres e um homem apenas. Então, nós utilizamos o plural feminino como uma provocação para fazer as pessoas pensar e criar uma disrupção”, explica.A disrupção passa também pela transformação da palavra “bicha”, carregada durante décadas de conotações pejorativas e discriminatórias. No filme, a dada altura, vemos a mão tatuada de Lila e lemos a palavra “bicha”. Ela diz: “A palavra bicha é super importante para mim. É tatuar no corpo de uma forma visível a minha identidade e que ela faça parte da forma como sou vista e lida”. João também tem a palavra tatuada no corpo e explica-nos como é que se trata de mais um gesto artivista.“A palavra bicha passou muito tempo nas nossas vidas como uma identidade que nós tentámos esconder durante muito tempo e, de muitas formas, tivemos vergonha dela e foi usada contra nós de muitas formas. Ao escrevê-la no nosso corpo, é uma espécie de fim de uma negação e de um compromisso social e pessoal porque mesmo que nós queiramos esconder, ela está visível. A Lila tem-na inscrita na sua mão, a minha está inscrita num braço e eu senti que era importante não haver espaço para dúvidas da minha identidade e deixá-la inscrita e visível”, resume.O projecto “Fado Bicha” tatuou também a história recente do Fado, um espaço onde sempre existiram pessoas queer - artistas, fadistas, letristas, poetas - mas sem que isso se reflectisse, por exemplo, nas letras das canções. Com Fado Bicha, isso mudou.“O fado carrega, ainda hoje em dia, 51 anos depois do 25 de Abril, o peso e o impacto que o Estado Novo teve no género do fado. O fado tem uma tradição antes do Estado Novo, até antes mesmo da ditadura militar e até antes mesmo da implantação da República em Portugal, que foi em 1910. Tem uma tradição de dissidência e de intervenção social muito forte, que é uma coisa que a maioria das pessoas não sabe, mesmo na viragem do século XIX para o século XX. Há uma tradição muito forte de fado republicano, de fado anarquista, mesmo durante o século XIX. Tendemos a pensar que o fado sempre foi sobre saudade e marinheiros, mas no século XIX era um fado contra a miséria, contra a Igreja, contra o abuso laboral. Portanto, quando nos acusam que estamos a corromper as bases fundamentais do fado, na verdade, nós estamos a honrá-las porque estamos a ir buscar outra vez esse lado de denúncia e de intervenção social”, sublinha Lila Tiago.Porém, “Fado Bicha” causa ainda “muito desconforto a uma série de pessoas”, acrescenta a artista. A ilustrar isso mesmo foi o facto de Justine Lemahieu ter sido obrigada a retirar uma sequência do filme relativa ao videoclip “Lila Fadista”, uma adaptação do fado “Júlia Florista”. Os herdeiros de um dos autores deste fado recusaram ver o documentário e não licenciaram os direitos da canção. Lila e João são várias vezes confrontadas com este tipo de situações, ainda que faça parte da própria tradição do fado a interpretação de canções que já existem.O documentário “As Fado Bicha” chega aos cinemas portugueses a 17 de Abril, depois de ter passado nos festivais IndieLisboa e no Queer Porto em 2024 e no Thessaloniki Documentary Festival este ano.[Além da entrevista a propósito do filme, pode ouvir, abaixo, outra das entrevistas que as Fado Bicha deram à RFI, em Maio de 2022, na qual tocaram, por exemplo, “Crónica do Maxo Discreto”.]