Cinebiografia de Ney Matogrosso fecha Festival de Cinema Brasileiro de Paris após sucesso no Brasil
O longa "Homem com H", cinebiografia que homenageia Ney Matogrosso, fechou a programação do Festival Internacional de Cinema Brasileiro em Paris na terça-feira (6), depois de uma estreia de enorme sucesso em 1° de maio no circuito nacional. Mais do que um retrato de um ícone da música popular brasileira, o filme dirigido por Esmir Filho investiga as brechas poéticas entre ficção e realidade, reativando a memória afetiva do repertório de um dos maiores intérpretes do cancioneiro do Brasil. O diretor Esmir Filho conta que uma das primeiras etapas do processo de escrita e realização do filme foi ouvir toda a discografia de Ney Matogrosso em ordem cronológica. Segundo o realizador, esse mergulho sonoro funcionou como uma espécie de ativação das memórias afetivas ligadas à obra do artista. A partir dessa imersão, surgiu a necessidade de fazer escolhas dentro do vasto universo que Ney representa. Segundo ele, o desafio foi justamente selecionar, entre tantas fases e personagens que compõem esse “panteão” musical e performático, os elementos que melhor traduzissem a essência de Ney Matogrosso para a linguagem cinematográfica."Ney é um artista que sempre escolheu as músicas que quis cantar. Ele não é um compositor, ele é um intérprete, mas ele é também um coautor da música, porque ele amplia o significado da canção, ele torce os sentidos", destaca Esmir Filho."Outra coisa que ele sempre diz é que ele cultiva o amor à primeira escuta. Eu acho isso lindo, é quando bate de cara, sabe?", diz. "Foi muito lindo partir desse ponto, pensar a música para depois depois mergulhar na história do artista e entender o que ele estava vivendo enquanto ele cantava", ressalta.Lacunas entre a realidade e a ficçãoNa visão do diretor, a cinebiografia — ou biopic — também pode abrir espaço para a invenção e a ficção. A ideia parte de uma concepção mais poética da memória, que ele próprio resumiu em uma frase dita durante uma conversa com Ney Matogrosso: “Memória é lacuna”. Ao compartilhar essa provocação com o artista, Esmir Filho conta que recebeu uma resposta positiva, como se Ney reconhecesse, também, que lembrar não é simplesmente recuperar fatos, mas lidar com fragmentos, sensações e silêncios."Eu acho que, quando a gente trabalha com cinema, trabalha com uma estrutura narrativa. Existe um arco de personagem a ser construído", afirma. "Por isso, minha intenção nunca foi simplesmente colocar um monte de eventos que aconteceram na vida do Ney, como se fosse um mosaico de momentos soltos. Eu sentia que precisava haver uma linha, um fio condutor narrativo. E passei um bom tempo tentando entender qual seria esse fio. Aos poucos, percebi que ele era quase transparente, mas, ao mesmo tempo, muito forte. Era um fio emocional", sublinha o diretor.Esmir Filho conta que Ney Matogrosso acompanhou de perto o processo de escrita e realização de "Homem com H". "Desde o início do processo, o Ney acompanhou tudo de perto. Ele leu todas as versões do roteiro e sempre fazia comentários, trazia detalhes, enriquecia com mais textura. À medida que lia, ia captando nuances, compreendendo as escolhas narrativas — como, por exemplo, quando duas situações reais, que aconteceram em momentos diferentes da vida dele, eram fundidas em uma única cena para fins de construção dramática", diz. "Eu sempre mostrava para ele, queria saber se algo o incomodava. Mas nunca houve uma relação de aprovação formal ou de controle criativo. Era um espaço de colaboração, de troca, de presença", destaca Filho. "Quando comecei a escolher o elenco, mandava para ele as fotos dos atores, mostrava os rostos, queria que ele visse quem estaria ali representando sua história. Ele chegou a acompanhar três diárias de filmagem — ficou muito feliz, se emocionou. E, antes mesmo do corte final, fiz questão de mostrar um corte mais avançado do filme, porque queria saber o que ele sentia ao assistir. Foi uma forma de respeitar esse vínculo que construímos ao longo de todo o processo", afirma o realizador.Pastiche do clichê masculinoA escolha do título "Homem com H" reflete quase um pastiche do clichê masculino, da figura de autoridade paterna que Ney Matogrosso sempre confrontou de forma tão direta. "Ney borra as fronteiras da masculinidade, questionando tudo o que é dado, aprendido ou imposto. Muitas vezes, a masculinidade se revela opressiva para muitos corpos, e é nesse contexto que a primeira frase do pai na história dele ganha peso, ele bate no filho dizendo 'para você aprender a ser homem'. Mas o que significa ser homem? Essa pergunta ressoa ao longo de toda a trajetória do intérprete", aponta Esmir Filho."O nome do filme também carrega uma reflexão interessante. Quando recebi o convite da Paris Filmes e Paris Entretenimento para escrever e dirigir a cinebiografia, me deram liberdade para decidir o recorte, com uma condição: o título já estava definido", conta. "Eles escolheram Homem com H por conta da música, que é o maior hit de Ney. Isso me fez parar e refletir: o que esse nome significa na cinematografia desse artista? Foi então que percebi que, assim como Ney canta com deboche a música Homem com H, ele amplia e distorce seu significado. Ele diz: 'Eu sou homem, sou com H, mas tô aqui, tô fazendo isso'. É uma afirmação irônica, e eu acho isso lindo", sublinha.Em plena ditadura militar, em um Brasil essencialmente machista e homofóbico, podemos dizer que Ney Matogrosso encarnava sua luta por liberdade ao exaltar e celebrar um corpo queer, mas o fazia de forma instintiva, segundo o realizador. "Ney chegou antes de tudo isso. Ele chegou quando 'tudo era mato'. É como se, ao chegar, ele fosse esse ser selvagem, que mirou no bicho e decidiu dizer aos homens, mulheres e a todos que podemos ser mais do que uma coreografia rígida do gênero", afirma Esmir Filho.O diretor descobriu durante o processo de filmagem, lendo a biografia que inspirou o filme, que o nome do artista não era Ney Matogrosso, mas sim Ney de Souza Pereira. "O pai dele, militar, se chamava sargento Matogrosso, e foi essa herança familiar que acabou sendo transformada no nome artístico", revela."Ele incorpora o nome do pai para entrar em cena, adota o nome dele como uma maneira de resgatar simbolicamente aquilo que lhe foi negado. Esse gesto é poderoso. O pai disse: 'Você não vai ser artista, eu não quero isso perto de mim'. E Ney respondeu: 'Não, eu vou ser artista, e o seu sobrenome vai comigo.' Esse movimento, essa escolha de levar o nome do pai como um símbolo de afirmação pessoal e artística, é algo muito forte", argumenta.Cazuza e Ney"Sempre que eu dizia que estava escrevendo a cinebiografia de Ney Matogrosso, todo mundo perguntava: 'Vai ter Cazuza, né?'. E não era só uma simples pergunta, mas uma expectativa", conta, divertido, o diretor."Todo mundo sabia da história de amor que eles viveram. E, quando falo de uma história de amor, não me refiro apenas à paixão intensa e efêmera dos três meses em que namoraram, mas sim a um amor que perdurou para toda a vida. Eles se completaram muito como artistas, se dialogaram nesse lugar, e essa troca foi crucial na carreira dos dois", destaca."A turnê O Tempo Não Para, que foi a última turnê de Cazuza — se não me engano —, é um exemplo disso. Naquele momento, ele já estava fortemente afetado pela AIDS, e a turnê se tornou uma despedida artística deles dois. Foi durante essa turnê que Ney elaborou todo o setlist com Cazuza, vestiu ele e, inclusive, foi responsável pela imagem que temos de Cazuza no palco com aquelas luzes — o desenho de luz era de Ney, ele dirigiu esse show", conta Esmir Filho."Quando Cazuza disse que não daria tempo de incluir a música [O Tempo Não Para] no show, Ney insistiu: 'Não, ela vai encerrar'. Essa história é fundamental na trajetória de ambos, tanto de Cazuza quanto de Ney, e precisava ser contada", conclui.O longa "Homem com H" segue nas primeiras posições das bilheterias brasileiras, contabilizando mais de 160 mil espectadores na primeira semana e, em breve, disponível em streaming "para mais de 180 países, para todos assistirem". Em francês o filme se chama Homme avec un grand H (Homem com H maiúsculo, no original). Eu gostei da tradução", finaliza o diretor.(Para assistir à entrevista completa, clique na imagem principal da matéria)